A Luz Que Não Se Apaga

    Acordo. Baque. Estranheza. Escuridão. Madrugada. Levanto-me da cama e caminho até à janela da sala, tossindo bastante. Sento-me numa cadeira macia e oblíqua. Não é tão cedo afinal. Vejo várias figuras distintas pela janela, ou melhor, possuo uma sobrecarga de imagens na minha vista, um pouco embaçada, e no meu cérebro, cambaleante, como quem pensava em outra coisa quando foi cobrada a atenção. O céu está alaranjado e com alguns outros tons de vermelho. Todas as cores são quentes e parecem representar a energia e a agitação prometidas para o restante do dia. Parece avisar, "Hoje, será especialmente intenso!" Pensando bem, essa parece uma cor de vitória e efusividade. É o anúncio da vitória do dia sobre a noite. É a comprovação  de um novo dia para o homem temeroso que ouviu sobre o fim dos tempos e, agora, sabe que ainda terá a oportunidade de formar lembranças duradouras com seus entes queridos, pois, sempre que tenta rememorar algo feliz, a memória o prega uma peça. Sim, é claramente uma comemoração. As nuvens imponentes são o anúncio de soldados distantes para os seus compatriotas escondidos nas suas tocas, os quais não sabem quando a guerra cessará, até agora. Contudo, a sensação que temos é que nossos irmãos dormem, e suas almas perambulam por aí. Essa sensação é a prova indubitável de que esta estrutura material, repleta de carne, muco e dor, não passa de um traje que, infelizmente, nos aprisiona. As badaladas do sino da igreja parecem avisar às almas que o espetáculo cotidiano começará, e elas precisam entrar em posição. É possível ver as almas correndo apressadas da mesa em que estão postos os alimentos - vale dizer que só restou uma única uva - e Deus, o diretor, sentado na sua cadeira , exclusiva, com seu nome atrás. As badaladas cessam, e parece que está tudo pronto. Porém, resta uma desilusão na plateia desse espetáculo, pois era esperado ver as supostas criaturas mágicas e lendas que rondam por aí exatamente quando dormimos e não mais. Enfim, o sol surge como uma visita inoportuna e nos faz pensar se ele não está fora de hora ou entrou no cômodo errado. As coisas voltam ao seu ritmo já conhecido. Os corpos, já aquecidos estão esperando ansiosamente suas deixas. Aquela chama que brilhava nos céus virou lembrança e deixa saudade. Esperávamos ver mais daquele espetáculo que ainda gera questionamentos e discussões sobre o grande desfecho. Certamente, aquela luz que pairava sobre nós nos contagiou e, fixada agora dentro de nós como um livro marcante e formador de caráter, ela não permite pensar que se apagará.